Saubara preserva tradições, como as Caretas do Mingau, e ganha roteiro cultural

Uma imersão na vida popular de Saubara, a 110 km de Salvador, que reencena a participação do povo na luta pela Independência do Brasil na Bahia Oencontro das almas tem data marcada. Todos os anos, na madrugada do dia 2 de julho, elas se amontoam no centro de Saubara, a 110 km de Salvador, para vaguear pelas ruas da cidade.

Levam facões na cintura, espingardas nas costas, panelas na cabeça. Há quem fique acordado para ver de perto com os próprios olhos, há quem abra só uma frestinha da porta de casa para espiar, e há até quem, com tamanha coragem, as convide para tomar um licor e entrar.

As assombrações atendem pelo nome de Caretas do Mingau. A história que se conta é que precisavam alimentar os maridos e filhos que lutavam contra os portugueses nas batalhas pela Independência e aí, para não dar na vista, saíam no meio da escuridão da noite cobertas por lençóis brancos. Se topassem com o inimigo pelo caminho, seriam eles a correr aterrorizados, certos de terem avistado um fantasma. Nas panelas ia comida, mas também armamentos de verdade, não esses que agora carregam feitos de papelão e papel alumínio.

Não há registros de quando as saubarenses resolveram transformar a singular estratégia de resistência e luta em manifestação pela celebração da vitória, alcançada em 1823. A integrante mais antiga do grupo, dona Maria da Cruz, tem 95 anos e virou careta aos 5. Antes disso, sua mãe já integrava o grupo. Hoje  está acamada e lamenta não participar mais da festa.

Representando-a com distinção estão cerca de 20 mulheres, entre elas a marisqueira Vanda Rodrigues, 54, que desde os 12 cobre o corpo com uma toalha rendada branca e uma vez por ano sai gritando no meio da noite: “Olha o mingaaaaaaau”, num agudo de ensurdecer os viventes. “Quando era pequena, tinha aquele pavor, faziam medo aquelas panelas com o fogaréu dentro, os gritos todos. Depois, entrei na brincadeira. Vi que era uma homenagem para as guerreiras que saíram para lutar, enquanto os guardas se escondiam achando que era visagem”.

E muita gente ainda pensa. Vanda lembra que uma vez passaram pela rua do cemitério, ainda sem luz elétrica, e teve foi homem tido por valente que saiu correndo desembestado. “Ninguém aguentou. Quando virou a rua, a gente teve que sentar para rir”.

Este ano, elas foram convidadas para participar da Levada da Cabocla, evento que mobiliza os 12 mil moradores da cidade no começo da noite do dia 1º de julho. Muitos deles viram as Caretas do Mingau pela primeira vez, iluminadas pelos fachos de fogo distribuídos para a população, desde os grandes até os meninos pequenos. No ambiente movimentado e seguro, foi-se o medo, e teve até gente pedindo para fazer selfie com as caretas. Ao fim do percurso, elas cantaram e dançaram numa roda de samba, naquela alegria esfuziante de pertencer a algo que as antecede.

Feminino

De madrugada, às 2 da manhã, com bem menos gente nas ruas, juntaram-se para receber instruções de um homem, conhecido como Bel Saubara, pesquisador amador e articulador da comunidade. Em 2012, quando o grupo estava para acabar, ele instigou as mulheres para que não deixassem a tradição morrer. Hoje, é uma espécie de coordenador do grupo, tão feminino na sua origem e existência. Outros homens aproximam-se, vestidos com lençóis e toalhas brancas, e passam a integrar a manifestação. “Vocês vão para trás, por favor”, diz Bel, numa tentativa de preservar o protagonismo feminino, mas nem todos cumprem a ordem.

Enquanto tomava um licor ofertado de uma casa por onde passaram, Vanda segreda que não está gostando disso: “Não é normal. É das mulheres. Se deixar morrer a cultura, não tem nada feito”. O jeito a dar, diz, é discutir o tema numa próxima reunião do grupo.

A cabeleireira Raiana Lorena, 24, nascida e criada em Saubara, fazia naquela noite a sua estreia nas Caretas. E pensar que ela conheceu o grupo primeiro por uma reportagem na televisão. Cresceu tendo medo daquela aparição, mas  no ano passado tomou coragem e abriu a porta de casa para ver. Depois, recebeu um convite para integrar a manifestação, num movimento de renovar para sobreviver. “Me esforcei a semana toda, estudei o material  que me deram, e agora estou conhecendo mais a história”.

Depois de muitos gritos, cantorias, sambas e distribuição de mingau de milho, encerraram o encontro às 4h, bem na hora em que começava uma chuva fina. Algumas delas iam descansar só umas horinhas antes de embarcar para Salvador, onde participariam pela primeira vez do Cortejo do 2 de julho.

Bel conta com a visibilidade ganha no evento da capital para agilizar duas “lutas pelo reconhecimento” do grupo. Quer que o Estado reconheça a manifestação como Patrimônio Imaterial da Bahia e também como Heroínas da Independência. “Estão no mesmo patamar de Maria Felipa, Joana Angélica, Maria Quitéria”.

Em nota à Muito, o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac) informou que as Caretas do Mingau farão parte de um inventário coordenado pelo órgão que irá “contemplar os municípios onde ocorreram batalhas ou ações nas lutas pela independência baiana”. Saubara, que só deixou de ser distrito de Santo Amaro em 1989, demorou a ser reconhecida como integrante desse grupo.

O atestado oficial, digamos assim, veio quando a cidade passou a integrar, há cerca de 10 anos, o roteiro do fogo simbólico, que percorre os municípios onde se travaram lutas pela independência. A iniciativa partiu de pesquisadores que resgataram um trechinho do Dossier do Marechal Pedro Labatut, de Affonso Ruy, publicado em 1960, que retrata uma longa batalha em Saubara: “A luta se alonga por mais de seis horas; um assalto inútil com desperdício de cartuchame. Os portugueses desistem do seu intento para ameaçar Saubara, cujos defensores, sem distinção de sexo, dirigidos pelo padre Manuel José Gonçalves, os rechaçam”.

Autora de  Saubara dos Cantos, Contos e Encantos, de 2006, a artesã Judite Barros gosta de afirmar, orgulhosa: “Esses pedacinhos de mundo é que constroem as grandes nações”. E quem pode negá-la?

Aprendizado

Quando resolveu estudar as Caretas do Mingau para a sua dissertação de mestrado na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), a historiadora Vanessa Almeida teve dificuldades em encontrar textos escritos sobre o grupo. A bem da verdade, o único documento que achou foi esse do general Labatut. 

Com a guerra provada e registrada, restava-lhe então resgatar as memórias e vivências das integrantes do grupo. “As Caretas são mais que manifestação cultural, são aprendizado sobre a história da nossa independência e do protagonismo feminino negro”.

Ela reuniu as histórias que ouviu na dissertação A guerra tem rosto de mulher: as Caretas do Mingau! Narrativas da Independência da Bahia em Saubara, que defendeu no ano passado. Além de pesquisar o tema, Vanessa é, ela mesma, uma careta. Na madrugada de domingo para segunda estava lá, coberta e irreconhecível em versão alma penada.

Com tanto conhecimento acadêmico e de causa, ajudou a organizar a primeira edição do Turismo do Saber – Epistemologias do Sul: Uma visão de mundo saubarense sobre a Independência da Bahia, roteiro criado pelas redes Amo e Mestiça, de Salvador. A ideia era oferecer uma “experiência cultural, histórica e filosófica” durante três dias na cidade, emendando o fim de semana com o feriado cívico na segunda.

O ponto alto da expedição era, naturalmente, acompanhar os passos das Caretas do Mingau. A designer Alice Barreto, que idealizou o roteiro, volta 15 anos no tempo para contar como gestou o projeto. Diz que quando conheceu Saubara, em 2008, foi “amor à primeira vista”. A cidade virou seu lugar preferido para passear nos fins de semana até que resolveu morar lá, numa época em que estava mais interessada no que chama de design social do que em design de moda, sua área original de formação.

Alice passou a pesquisar sobre gestão de projetos culturais para cidades criativas e foi aí que pensou em criar uma plataforma de desenvolvimento sustentável que unisse turismo cultural com economia criativa. Passou cinco anos maturando o desejo até que  leu a dissertação de Vanessa, que conheceu em Saubara e de quem ficou amiga, e correu para o calendário. A hora era aquela. Em duas semanas, articularam e divulgaram o roteiro.

Cerca de 20 pessoas participaram da imersão, acompanhada pela Muito. Os fotógrafos formavam o maior grupo, ávidos por registrar um quê de Bahia profunda que ainda não tivesse virado clichê.

A viagem, apesar de curta, tornou-se penosa a partir da BA-878, que liga Santo Amaro a Saubara, seguindo pelos distritos de Cabuçu e Bom Jesus dos Pobres, e que está para lá de esburacada. O governo do estado assinou em março uma ordem de serviço para recuperar a estrada.

No programa de imersão teve de um tudo: de roda de conversa a passeio de barco, passando pela reinauguração do barracão de um terreiro, o  Ilé Asé Bàbá Òké, em Bom Jesus dos Pobres. À frente do templo religioso, como prefere chamá-lo, está o babalorixá  Agenor Santana, que também é historiador e fez as vezes de guia pelas águas claras do rio Paraguaçu. “A verdadeira rota da independência é a rota náutica”, provoca.

Enquanto alinhavava um e outro acontecimento histórico, Agenor ia lembrando dos seus tempos de menino, acompanhando o pai por aquelas mesmas águas, montados os dois num saveiro. “Ele levava frutas, farinha, carne defumada para Salvador. É um cheiro que não esqueço nunca”.

Inesquecível também é a moqueca de camarão e siri preparada por Cristina Ferreira de Jesus, 40, que gosta mesmo é de ser chamada de Danda. “Eu não cozinho. Transformo alimento em amor”. E é mesmo difícil não se sentir acarinhado a cada garfada. Filha de Iemanjá e responsável por preparar as comidas para os deuses no Bàbá Òké, Danda chora quando diz que foi o mar quem sempre lhe deu tudo.

As praias de Saubara atraem um mundo de visitantes nos verões, mas nesta época do ano é possível encontrá-las vazias, quase desertas. Algumas são margeadas pela mata atlântica, criando cenários de deslumbrar a vista.

Animada com a experiência, Alice já está pensando em criar outros roteiros, também em Saubara. A próxima expedição está prevista para os dias 28 e 29 deste mês e será dedicada às caretas e mandus do Recôncavo. Nos dias 4 e 5 de agosto, será a vez de acompanhar o VI Encontro de Cheganças da Bahia, que irá reunir 12 grupos de 10 cidades baianas para celebrar esta outra riqueza popular, as marujadas.

Esta edição foi encerrada com o desfile cívico do 2 de Julho. As escolas da cidade dividiram-se em dezenas de alas – índios, vaqueiros e, por que não, transformers, como naquele filme em que carros viram robôs – acompanhadas por pequenos carros alegóricos. Entre uns e outros, as filarmônicas de Saubara, com os integrantes a caráter usando aquelas roupas compridas, impiedosas, como se fosse irrelevante o calor.

E eu não devia te dizer, mas essas bandeirolas penduradas na rua, esses coloridos das vestes, esses sons de trompete botam a gente comovido como o diabo, não é, Drummond? Dá até vontade de acreditar que o Brasil vai dar certo, só de ver aquele povo tomando a frente de uma manifestação tão sua,  mesmo que tanto tempo (e tanto infortúnio) já tenha passado.

Fonte: Jornal Atarde

 
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